Lembro com muita nostalgia de um tempo em que o maior perigo dentro da Assembleia de Deus era assistir TV, jogar futebol (para os homens), e cortar o cabelo (para as mulheres).
Eram os idos de 1980, num mundo onde não tínhamos celulares, computadores, internet, videogames modernos, e muito menos redes sociais. Os recadinho dentro de sala de aula eram repassados de mão em mão até o destinatário. As meninas, quando mostravam interesse, davam o seu diário para os meninos “assinarem" e escreverem frases e cantadas galanteadoras.
Dentro das igrejas a reverência era grande. Não podíamos, em hipótese nenhuma, entrar na igreja chupando uma menta, conversar (mesmo que rapidinho) com outra pessoa, ou tomar Santa Ceia se tivesse jogado uma partida de futebol durante a semana.
Pioneiros pastores da primeira convenção do Amapá, CRADAP. Ano: 1978
Aliás, existiam diáconos e presbíteros que faziam papel de “arapongas” do pastor da igreja e traziam o relatório completo com a lista para a disciplina dos jovens que jogavam futebol ou iam ao cinema.
Os hinos mais tocados nas rádios eram do Ozeias de Paula, Álvaro Tito, Shirley Carvalhaes, Sophia Cardoso, e outros. As letras dessas nostálgicas canções falavam (dentre outros assuntos espirituais) sobre corte de cabelo, condenavam a fornicação, sobre o tamanho da saia das irmãs, fazendo nosso povo cantar e aplaudir, mesmo sem às vezes entendermos o que cantávamos.
Lembro que minha avó me colocava para orar ao seu lado por 40 minutos antes de começar o culto de oração e doutrina; era costume naquela época. Nós não podíamos em hipótese algum faltar a Escola Dominical, que começava às 8h em ponto.
Eu fazia parte de uma grande família de 6 irmãos, e como dava preguiça na hora de levantar, meu pai (de saudosa memória), que também era pastor, bem cedo aos domingos colocava em nossa eletrola (!) aqueles discões de vinil, tipo bolachões, com a voz muito aguda de Álvaro Tito (o hino “Não há barreiras”), ou a voz grave e tronitrante de Ozéias de Paula, tudo com o o propósito de “torturar” e nos tirar da cama, para irmos à EBD. A estratégia sempre dava certo.
Acabei, com o tempo, virando fã desses cantores, e até hoje esses hinos estão impregnados nas minhas mais saudosas lembranças.
Não se podia cantar hinos mais ritmados, porque o pastor proibia. Haviam igrejas que separavam homens para um lado e mulheres para outro. O pastor quase que chegava a usar uma régua para medir o comprimento do cabelo das irmãs do círculo de oração e do conjunto de jovens. As vigílias eram de orações mesmo, e não de cânticos e “pula-pula” a noite toda. Ninguém falava em convenções e nem em disputa por cargos. Vez por outra a fita k-7 do play Back enrolava no cabeçote do gravador, e a "irmã" passava vexame na hora de cantar (a menos que a banda da igreja estivesse a postos para socorre-la).
Primeira congregação da Assembleia de Deus no Amapá. Ano: 1963
Muitas vezes, o irmão músico ficava tentando pegar a nota no violão, acabava o hino e o irmão não conseguia acompanhá-lo, mas ninguém se incomodava. Lembro-me que certa vez um amigo meu foi disciplinado no culto de segunda-feira, porque simplesmente viajou e não deu satisfação para o pastor.
Era um tempo em que o pastor tinha tanta influência nas famílias, que ajudava até a escolher quem iria casar com os filhos dessas famílias. A figura do pastor era respeitada. A maioria dos pastores que dirigiam as igrejas nos interiores não vinham de seminários ou faculdades. Eram forjados pela experiência e trabalho na seara do Senhor. A “doutrina” era dura e inflexível.
Muitos desses pastores mal sabiam escrever o nome, mas quando abriam a boca para anunciar o evangelho de Jesus, o céu descia sobre a Igreja e nossa alma transbordava de alegria e edificação celestial.
Eram verdadeiros homens de Deus escolhidos a dedo para uma obra que poucos desejavam ou estavam dispostos a seguir. O pastor era uma autoridade tão grande e respeitada naquela época, quanto o prefeito, o juiz ou delegado nesses pequenos municípios interioranos.
Hoje boa parte de tudo isso só existe na memória de quem viveu esses tempos. Muita coisa mudou. Não posso concordar com tudo como era antes, mas também não posso dizer que exterminar todas essas práticas e costumes da nossa igreja original foi bom para a nossa vida espiritual. Temos uma identidade Assembleiana!
A questão é que em um país de dimensões continentais, cada região guarda as suas peculiaridades, que tornam a Assembleia de Deus a maior denominação Evangélica do Brasil, com uma variedade de costumes, tradições e com uma verdadeira cultura cristã característica, criada pela adaptação à variedade regionais e culturais.
Os pastores hoje são menos respeitados, em parte, em razão da multiplicação abundante “a rodo” e sem critérios dessa função tão importante e meritória, principalmente para fins eleitorais em algumas convenções.
A Assembleia de Deus se subdivide em uma miríades de segmentos de norte a sul deste vasto Brasil, e não há que se falar em uma igreja que seja mais santa que a outra. O que existem são costumes locais que são diferentes, simplesmente por não termos uma tábua de padrão consuetudinária e eclesiásticas, e isso deve ser respeitado.
A Assembleia de Deus é, e sempre será, uma igreja que expressa a riqueza e variedade de um país tão extenso. É essa riqueza, que a faz forte e firme. É por isso que quanto mais ele se divide em outros segmentos, mais se multiplica. Um fenômeno raro, e que contraria as fórmulas matemáticas e a própria compreensão humana.
Comentários
Postar um comentário